GUINÉ-BISSAU – DELÍRIO COLETIVO

Durante os dois meses da crise política que se instalou na Guiné-Bissau, o meu estado de espírito passou por várias fases, mas dominado essencialmente pela necessidade de um silêncio observador.

Primeiro foi um silêncio imposto pelo facto de estar de férias e sem acesso assíduo à internet, pela exigência familiar que o momento exigia. No regresso das férias, já tinha “corrido muita água debaixo da ponte” e fui acreditando progressivamente que todo o desenrolar desta crise era nada mais, nada menos, que o necessário trilho que a democracia guineense precisava percorrer, no seu natural processo de amadurecimento e que naturalmente vamos encontrando caminhos que nos levem à “solidificação” da nossa democracia.

No entanto, aquando da precipitada e infeliz nomeação de Baciro Djá para Primeiro-Ministro, passei pela fase de querer desligar-me totalmente dos assuntos relacionados com a política guineense por, pela primeira vez ao longo da minha vida, apoderar-se de mim uma total decepção e descrédito em relação à nossa classe política e ao povo guineense em geral. Cheguei a dar razão à minha esposa que, em tom jocoso, vai dizendo que, desde que nos conhecemos (há 18 anos!) que me ouve a dizer que a Guiné-Bissau vai melhorar e que o Benfica é roubado pelos árbitros… Infelizmente, tive de assumir que esse comentário faz parte da característica feminina que, mesmo não estando bem informadas sobre um assunto, o chamado “sexto sentido” leva-lhes a dizerem umas verdades, que a cumplicidade dos anos lhes permitem enxergar.

Comecei a aceitar melhor os comentários da minha esposa em relação ao meu país, do que em relação ao meu glorioso Benfica!

Optei por um custoso silêncio, durante esse tempo, embora ouvisse e lesse diariamente as maiores barbaridades que foram sendo ditas e escritas nos espaços públicos.

O fenômeno internet, principalmente os “blog’s”, permitiu a disseminação da informação e emissão de opiniões de vários tipos, vindas de todos os quadrantes da sociedade guineense e da diáspora e com qualidades e níveis variados, desde excelentes reflexões, até insultos diretos á figuras do Estado e intromissão na vida pessoal e familiar das mesmas fíguras e outros cidadãos, só porque também emitiram opinião contrária. Tudo isso, foi possível, devido à facilidade com que todos criam um ou opinam nalgum blog ou “site”, sem respeito às mais básicas das regras da comunicação escrita e da legalidade da disseminação das notícias e outras informações. Na Guiné-Bissau, essa disseminação do fenómeno internet e blog’s, tem o agravante de estar associada à generalizada sensação de impunidade legal, a iliteracia em seus diferentes níveis, a necessidade de protagonismos fáceis, a carência económica, a falta de nível de alguns líderes políticos e sociais, permitindo assim, a criação de um “caldo” propício aos conflitos pessoais, institucionais e institucionais-pessoalizados.

GRÁFICO

Já nos anos 70, Edgar Morin revelava no livro ”O Boato de Orleães”, o perigo e a repercussão social e política dos boatos e mitos. Hoje, com a fácil difusão pela internet numa sociedade desinformada, os mitos e boatos facilmente criam delírios colectivos e quero crer que a Guiné-Bissau neste momento vive um delírio colectivo, faccionado e personalizado em duas (ou mais) figuras com responsabilidades políticas e na direcção dos destinos de todo o país, necessitando que venha alguém de fora despertar-nos desse delírio.

Convém referir que os próprios indivíduos em causa (recuso-me a mencionar os nomes, justamente, para não entrar no campo da pessoalização), não estão isentos de uma grande responsabilidade no instalar e propagação desse delírio colectivo faccionado, não só pelas posições e decisões que foram tomando, como pela crença que têm nas próprias capacidades da manipulação da opinião pública, como pelo facto de não se esforçarem para o desmontar desses mitos e boatos, nos meios de comunicação credíveis. Envolvidos na expansão do delírio colectivo, o esforço centrava-se em comunicar e de preferência desinformando em quantidade e pouco em qualidade.

Tudo leva-me a crer, que quase todos esses blog’s/sites facciosos, dos dois lados da barricada, que defendem cegamente as suas “damas”, independentemente das evidências contra “as mesmas”, devem estar a ser bem financiados, pelos próprios interessados, fazendo dessa forma com que a política baixe de nível e venha “lavar a roupa suja” à praça pública, com assuntos de reuniões entre figuras do Estado, decisões saídas de reuniões com interesses restritos dos partidos políticos ou dos órgãos representativos do Estado, documentos trocados entre órgãos oficiais de Estado a serem expostos nessas páginas virtuais, sem pejo nem responsabilidades legais, como se de munições de guerra se tratassem e, ainda, por vezes (se não a maioria das vezes), com leituras completamente deturpadas ou deficitárias! É certo que, há uma das partes que usou e abusou da manipulação da opinião pública e, como a melhor arma da democracia populista, esquecendo-se dos reais perigos dessa forma de fazer política, principalmente quando não se consegue transformar essa forma de domínio do público em factos da vida real que defendam efectivamente os interesses nacionais e mudem verdadeiramente o rumo do país e a vida da população.

Sem querer tomar partido, neste momento, queria convidar aos guineenses para uma reflexão sem pessoalização nas figuras envolvidas, pensando apenas nas funções e competências das instituições, independentemente das individualidades que os representam.

RELAÇÃO DE FORÇAS

1. Alguém já viu por esse mundo democrático fora, algum partido político que consegue vencer as legislativas e presidenciais e depois não conseguir governar, por graves divergências internas? É minha opinião que o PAIGC, como a “principal porta” através do qual se consegue aceder à altos cargos do Estado, encontra-se neste momento sobredimensionado em termos de números militantes desejosos de um dia ocupar esses cargos, face à dimensão territorial e económica do país. Por isso, existem facções dentro do PAIGC, que se vão moldando e transformando-se, conforme a inclusão ou a exclusão no elenco governativo e outros cargos (melhor dizendo, conforme as conveniências e as “mamas” de que dispõem no momento). O pior de tudo, é que, nessas quatro décadas da nossa independência, o PAIGC nunca conseguiu conter essas contendas dentro do seu seio, transbordando sempre para a sociedade e salpicando sempre o povo, que acaba sempre por ser a maior vítima de uma luta que não lhe interessa de forma direta. O PAIGC, pelo facto de ter sido o partido libertador, sempre confundiu a Guiné-Bissau com o quintal da sua sede! Talvez seja pela tão questionada proximidade do quintal da sua sede, com o quintal do palácio! É caso para plagiar aquele velho angolano e perguntar aos militantes do PAIGC, “quando vai acabar mesmo a independência”? Ou o PAIGC se dimensiona rapidamente, adaptando-se às necessidades do país, ou deve extinguir-se ou até voltar a fraccionar-se, para dar origem a dois outros partidos, como ocorreu com a separação do PAIGC e o PAICV, mas desta vez que mudem completamente o nome e as siglas. Caso contrário, um dia, quando o povo for mais esclarecido, o país estiver mais desenvolvido e a justiça for capaz, o PAIGC poderá ser chamado a responder por todos esses anos de cativeiro a que submeteu todo um país…

2. Alguém acha que, após a resistência do ex-Primeiro-Ministro em permitir que a justiça investigasse os membros do seu governo, atacando frontalmente a Justiça e, ainda, trazer ao público, assuntos do Estado entre a Primatura (os guineenses permitem-me a expressão) e a Presidência da República, havia condições para a sua continuidade no cargo?

3. Alguém acha que um Presidente da República, tendo na sua posse dados que indiciem fortemente atos de corrupção na governação, não devia agir em conformidade, com as respectivas consequências políticas e, de seguida, encaminhar esses dados para a investigação judicial?

4. Agindo da forma como agiu, denunciando publicamente atos de corrupção e nepotismo no Governo, alguém acha que o Presidente da República e todo o seu staff sofrem de grave insanidade mental, para não ponderarem devidamente esse ato, antes de o trazerem ao conhecimento público?

5. Alguém, no seu perfeito juízo, acha normal que o líder do partido político vencedor das eleições legislativas, após o derrube do Governo por ele liderado, insiste em voltar a propor-se para o mesmo cargo, pessoalizando a liderança do Governo e não atribuindo-a ao partido vencedor das eleições e, ainda, esperar ser aceite e nomeado pelo mesmo Presidente da República que o demitiu?

6. Alguém, no seu perfeito juízo, acha normal tentar que os estatutos do partido político vencedor das eleições se sobreponham à lei magna e aos interesses de toda uma nação?

7. Alguém, no seu perfeito juízo, acha normal, a “fuga para a frente” da Presidência da República em nomear a terceira figura do partido político vencedor das eleições, sem ter sido proposto por esse e sem ouvir outros partidos políticos? Em todo o caso, não deixo de me congratular com o facto da Presidência da República ter acatado pacífica e ordeira com a decisão do Supremo Tribunal de Justiça e o próprio militante aventureiro do PAIGC “meter a sua viola no saco” e ir tratar da sua vida…

8. Alguém acha normal que o partido político vencedor das eleições legislativas vá resgatar o seu capital moral e de experiência política, apesar das suas mais que oito décadas de vida, para usar como “testa de ferro” num conflito entre dois órgãos de soberania nacional e dentro do próprio partido?

Pelo respeito que me merece, vou tratar esse capital moral e de experiência política, pelo seu nome.

O JURAMENTO DO VELHO

Nesta fase da sua vida, o Senhor Eng. Carlos Correia merecia outras honras, outro respeito e outro reconhecimento pelo seu partido político e pelo seu país. O seu partido político devia ter-se esforçado para lhe dar um lugar de observador e árbitro, na altura da apresentação das candidaturas, propondo-o para a Presidência da República. Em vez disso, é hoje usado por políticos e quadros de formação política e moral inferiores a ele, para servir de “testa de ferro”, num absurdo braço de ferro criado dentro do seu próprio partido político! É minha modesta opinião que o Senhor Eng. Carlos Correia devia abandonar esse papel e exigir outros reconhecimentos dentro do próprio partido político e no país, ou até ir para a casa desfrutar das memórias dos seus feitos e sacrifícios pelo bem da nação, ao longo desses anos todos.

9. Alguém, no seu perfeito juízo, esperaria que a Presidência da República viabilizasse um Governo, cuja segunda figura é o ex-Primeiro-Ministro, recentemente demitido pelo próprio Presidente da República?! Para mim, não passou de uma grande provocação à Presidência da República, independentemente da figura de quem o representa.

10. Alguém, no seu perfeito juízo, esperaria que a Presidência da República viabilizasse um Governo, cujo Ministro da Administração Interna tenha sido demitido do mesmo cargo no Governo anterior, por exigências da Presidência da República, no contexto de um incidente grave que punha em causa a imagem externa da Guiné-Bissau? Outra grande afronta à Presidência da República, que demonstra a verdadeira face do PAIGC.

11. Algum guineense, com alguma formação cívica e académica, aceita de bom grado o papel que o Presidente da Assembleia Nacional Popular tem desempenhado não só na potenciação do início, como na manutenção deste conflito?

12. Alguém, no seu perfeito juízo, acha normal que seja proposto ao segundo partido político um acordo de formação do Governo, em que é apenas especificado o número de pastas a atribuir a esse partido político, sem especificar quais são essas pastas? A isso se chama brincadeira de “n’gana mininus”, da qual a segunda força política do PAIGC recusou a pactuar-se.

É urgente reorganizar ou extinguir o PAIGC e também legislar e criar mecanismos de regulação da comunicação social, incluindo a virtual, na Guiné-Bissau. Os tempos estão a mudar, as novas ferramentas vão entrando no nosso quotidiano e compete aos órgãos da Justiça pensar rapidamente na regularização e moderação da forma de comunicar com e para a sociedade guineense.

DELÍRIO POPULAR

É esperado que o novo Governo recém viabilizado apresente rapidamente o seu programa e orçamento, para que o país fique a saber se vai ou não tratar-se apenas da continuidade da política do Governo derrubado pelo Presidente da República, ou o país vai tomar outro rumo. Apesar de ainda ver nesse elenco governamental nomes que me justificam as minhas reservas, não queria deixar de dizer que espero deles menos populismo e demagogias, menos negociatas e adjudicações de obras sem concursos e, ainda, maior investimento nos três principais pilares da sociedade, a saber a Educação, a Saúde e a Justiça. Sem alicerces fortes nesses três pilares, não há biodiversidade que venda, sem comprometer gravemente o futuro do país, nem negócios lucrativos para o país, talvez apenas para  uma dúzia de oportunistas travestidos de governantes…

Para terminar, gostaria de dizer ao Senhor Ovídio Pequeno que, apesar de ter tomado a sua ameaça como desprovida de exequibilidade neste momento, não deixa de ser urgente a criação, dentro da União Africana, de estruturas capazes de responsabilizar os líderes políticos africanos, pelos seus atos, quando estes afetam seriamente os interesses de toda uma nação.

Quanto a mim, volto a estar crente que, mesmo que tenha de esperar outros 18 anos, chegará a altura em que poderei dizer à minha mulher que a minha pátria está a desenvolver-se num bom ritmo e o meu Benfica já não é prejudicado pelos árbitros.

Jorge Herbert

1 thoughts on “GUINÉ-BISSAU – DELÍRIO COLETIVO

  1. Carlos

    Quem fala assim não é gago.
    Parabéns pelo artigo.
    Simplesmente, acho que os dirigentes atuais estão todos malucos!
    A sua imparcialidade é de louvar.
    Às suas questões acrescento Uma: Alguém acha que a ministra da justiça que se destacou pela sua veemência no combate à corrupção devia ficar fora do novo governo?!!!!
    Cumprimentos,

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