A minha mais uma longa pausa na emissão de opiniões relacionadas com o desenrolar dos acontecimentos políticos e sociais na Guiné-Bissau, teve a ver não só com obrigações profissionais, mas por me encontrar munido de uma forte convicção que estou a assistir apenas ao processo natural da evolução da democracia guineense. Onde alguns vêm a ausência do Estado e risco da degradação social, eu estou a ver o natural processo da estruturação da democracia guineense e, onde muitos vêm possibilidade de rápido desenvolvimento do país, eu vejo negociatas que podem comprometer o país por mais de meio século.
Saídos do prolongamento de um Golpe de Estado em forma de transição política e de duas décadas de sucessivas interrupções da democracia por alguns aventureiros da nossa classe política e castrense, os guineenses não podem esperar uma democracia em pleno funcionamento, com autênticos e “afinados” democratas nas representações partidárias e nas instituições públicas, de um dia para outro. É de esperar sim, erros de actuação, de interpretações das leis e normas que regem o Estado de Direito e mais salutar é, quando as aceitações desses erros e as correcções decorrem num clima pacífico.
O que não se pode nem se deve tolerar são as tentativas de subversão das regras democráticas ou das leis, em prol de interesses ou convicções pessoais ou de grupos, usando de todos os meios e artimanhas possíveis.
Um dos pilares forte na edificação da democracia guineense, é o sinal claro que a classe castrense tem dado de se querer afastado do centro da disputa política. Assim é desejável que aconteça e se permaneça, para facilitação das disputas nas arenas políticas e judiciais. São, essencialmente nessas duas arenas que se deve desenrolar todo o jogo político democrático.
O segundo pilar que me parece estar a edificar-se é o Poder Judicial, já que deu mostras de querer manter-se afastado e independente das influências políticas, pese alguns actores judiciais ainda se deixarem influenciar pelas relações familiares, étnicas e economicistas. O poder judicial na Guiné-Bissau ainda tem um longo caminho a percorrer, mas não deixa de ser positivo os sinais que já deram ao poder político, de que há actores no seio desse poder, com vontade de lutar pela independência desse órgão, afastando-o do centro das disputas políticas.
A Presidência da República é outro pilar que tem demonstrado querer contribuir para a edificação da democracia, pese embora algumas lacunas que tem apresentado na sua difícil relação com os partidos políticos, com a Assembleia Nacional Popular, com o Poder Judicial e com a Comunicação Social, essencialmente na gestão cuidada da imagem interna e externa do Presidente da República. Em todo o caso, não podemos deixar de realçar a proeza de conseguir, na qualidade de figura suprema da classe castrense, manter os militares afastados da disputa do poder civil e tentar ser moderador dos conflitos partidários com e na Assembleia Nacional Popular, na busca de soluções pacíficas e com base na lei, para os conflitos que têm abrandado o normal funcionamento dos aparelhos do Estado.
Os pilares que deviam demonstrar maior coerência em todo este processo da reestruturação da democracia guineense são os que têm apresentado maior fraqueza e dificuldade no engajamento da democratização política e social do país! São eles os partidos políticos, principalmente aqueles com assento parlamentar, sendo que a maior responsabilidade vai para o partido que venceu as últimas eleições legislativas, portanto com responsabilidade governativa, para culminar na instituição que devia ser o centro e o maior poder representativo da democracia guineense, a Assembleia Nacional Popular e a figura obscurantista do seu Presidente.
Os partidos políticos, quer o PAIGC com responsabilidade governativa, como os da oposição, não têm estado a altura das suas responsabilidades para com o país, em todo esse processo de democratização, após uma fase de atribulada transição golpista.
O PAIGC com enorme responsabilidade governativa nesta fase, não soube fazer o trabalho de casa, no sentido da consolidação interna do poder do líder e acabou por conduzir o partido para a reincidência dos conflitos internos que o tem caracterizado ao longo dos anos, fruto do seu sobredimensionamento, face aos recursos do Estado, que não permite que todas as suas figuras de destaque consigam um lugar na tarefa governativa.
O presidente do partido em vez de unir e procurar consensos dentro do partido, optou por se posicionar num dos lados do conflito, provocando o agravamento dos mesmos, com a expurga dos insatisfeitos e de todos aqueles que ousam discordar do rumo que o partido ou a governação estava a tomar, fazendo alianças com estruturas do poder como a Assembleia Nacional Popular e estrategicamente com os órgãos de comunicação mais lidos ou ouvidos pelos guineenses.
O líder do maior partido do país, com responsabilidades governativas, reclama da falta de isenção e equidistância do Presidente da República, não conseguindo ele mesmo aplicar essa moderação, isenção, imparcialidade e equidistância na resolução dos conflitos, dentro do próprio partido que lider!
O PAIGC, na qualidade de partido libertador, sempre se confundiu com o Estado e o seu novo líder, como um “sangui nobu”, devia ter a sabedoria e o cuidado de separar as águas entre o partido e o Estado. Em vez disso, “djumbliu” as duas águas e permitiu que os problemas específicos do partido transbordassem para a esfera pública, contaminando gravemente a função governativa e do Estado em geral e, ainda, inquinando a imagem externa do país, que se esperava começar a renovar com toda a disponibilidade de apoio externo que se tinha colocado à nossa disposição, como medidas de prevenção de novas convulsões.
Só o PAIGC e o seu líder ainda não entenderam que o partido falhou redondamente no principal objectivo da era pós-transição, que era essencialmente aumento do fluxo de investimento externo para a estabilização social, económica e política. Terra misti ba ranka, ma i ka otcha bon tchofer!
No aspecto social falhou, quando em vez de investimentos e reformas concretas nos pilares sociais que é a educação, a saúde e a modernização das instituições públicas, limitou-se a abusar da facilidade da comunicação e da disponibilidade de alguns órgãos de comunicação, para fazer uso até a exaustão de uma política demagógica e populista, com clara intenção da manipulação de consciências.
No aspecto económico ficou essencialmente pelas promessas de investimento externo, fazendo da Mesa Redonda de Bruxelas o motivo de uma grande festa que anunciava a resolução de todos os problemas económicos do país, sem explicar ao povo que se tratava verdadeiramente apenas da promessa de investimentos em forma de empréstimos que, caso não for bem aplicado em programas bem executados e com resultados a médio-longo prazo, poderia comprometer o bem-estar das futuras gerações. O pouco que se foi fazendo, ao nível económico, sempre esteve sob um forte efeito amplificador social, do populismo que caracterizou o Governo suportado pelo PAIGC.
No campo político, tentou inicialmente criar um falso e frágil consenso político, com a criação de um Governo superficialmente inclusivo, distribuindo pastas e cargos a outros partidos, como forma de silenciar a oposição, sem no entanto ceder-lhes meios para trabalharem adequadamente, não lhes permitindo dessa forma destacarem-se e virem a constituir ameaça à governação nas próximas eleições! Esse acordo de interesses, rapidamente ruiu e, conforme dizem os portugueses: quando as comadres se zangam, rapidamente se sabem as verdades.
Não só agudizou os conflitos dentro do partido, dividindo em vez unir, como também assumiu uma postura de confrontação e afronta ao mais alto magistrado da nação, o que culminou com a queda do seu governo e toda a resistência em abandonar o cargo, que já conhecemos e ser escusado aqui repetir.
O líder do PAIGC insiste em confundir legitimidade eleitoral com legitimidade democrática! Não me canso de referir que a democracia não se resume às eleições, nem tão pouco os actos democráticos são suspensos no dia a seguir a tomada de posse dos escolhidos nas urnas! Existem regras do jogo democrático, bem ou mal definidos, e é para serem “jogados” na arena política, judicial e social. Isso só fortifica a democracia. Não é, de forma nenhuma, a cultura da personificação do poder estatal com base nos votos apurados que fortifica a estrutura democrática do país.
Foi essa cultura da personificação do poder estatal na figura do líder partido vencedor das eleições que conduziu o país a esse beco com saída sim, mas muito estreitas e dependentes da colaboração de todos os actores políticos.
O líder do PAIGC confiou na expressiva vitória que teve nas eleições legislativas, no controlo inicial da oposição com atribuição de cargos ministeriais para os seus líderes, no controlo conseguido sobre a Assembleia Nacional Popular, através da maioria parlamentar conquistada e do controlo partidário do Presidente da Assembleia Nacional Popular. Ainda estava confiante no engajamento da população na sua causa populista porque o povo, farto das convulsões sociopolíticas e sedento do desenvolvimento do país, a qualquer preço, torna-se susceptível a mais bacoca manipulação populista.
No entanto, esqueceu-se do símbolo maior da democracia no sistema semipresidencialista, que é o nosso sistema democrático! Não só esqueceu-se da importância desse órgão supremo do estado, como optou pelo caminho da confrontação, inclusive publicamente, o que contribuiu não só para a queda do IX Governo, como para nos empurrar para o imbróglio político e jurídico em que nos encontramos.
Como disse antes, o líder do PAIGC permitiu que as disputas que só interessam ao PAIGC inquinassem a governação e a relação do Governo com a Presidência da República e, ainda, a relação entre os partidos, dentro da Assembleia Nacional Popular! Como se não bastasse, o Poder Judicial também foi salpicado com os dejectos colocados na ventoinha que se encontra dentro da sede do PAIGC.
O Presidente da República foi o primeiro a ser golpeado com uma certeira decisão judicial, acatou pacificamente e lembrou que quando chegar a vez dos outros acatarem, esperava que tivessem a mesma postura que ele teve.
Do diferendo do PAIGC com os seus 15 militantes deputados da Nação, resultou a expulsão destes dos órgãos do partido e ainda tentaram estender essa expulsão do grupo parlamentar dos mesmos.
Com providências cautelares e judiciais para o gaudio de uns e de outros, enquanto decorriam esses processos judiciais, o Presidente da República esforçou-se para promover o entendimento entre as partes litigantes, com a promoção de encontros entre eles e mediados por ele com a ajuda de representantes internacionais. O PAIGC abandonou as conversações e apontou a solução judicial como a única saída para a crise política instalada. Mas, contrariamente ao que esperava o PAIGC, o Supremo Tribunal de Justiça limitou-se a repor a legalidade sobre a ilegalidade cometida pela Comissão Permanente da Assembleia Nacional Popular e remeteu para a casa da democracia a resolução desse conflito que, a resolver-se dessa forma, certamente não abonará a favor do PAIGC.
Na sua fuga para a frente, convencido da sua popularidade com base no populismo usado durante a governação, o PAIGC vem agora pedir a realização dumas eleições gerais! Julgo que este partido está completamente desinserido da realidade económica e social do país que governa! O PAIGC esquece-se que governa é a Guiné-Bissau e não a Suíça! O PAIGC esquece-se que o impasse agora criado pelo próprio PAIGC à sociedade guineense, é apenas uma lacuna do legislador que, eliminando a figura do deputado independente na lei eleitoral, não previu a possibilidade da ruptura dentro de um grupo parlamentar, caso alguns deputados discordarem frontalmente do rumo que o seu partido quer tomar nas votações das leis importantes para a Nação e não criou bancadas para deputados dissidentes ou em conflito interno com o seu próprio partido. A democracia portuguesa passou por essa fase de forte partidarização do poder político e conseguinte do parlamento, mas aprendeu e criou a figura do deputado independente, com bancada própria. A Guiné-Bissau, como sempre, até a copiar, não aprendemos com os erros dos outros!
Chegados a esse imbróglio essencialmente político mas também judicial, seguir para umas eleições gerais não é o caminho para a saída desse beco com poucas saídas.
O PAIGC, na prossecução da medição de forças, próprio de um “matchundadi” primitivo, vem demonstrando, qual menino dono da bola que não deixa ninguém jogar se não obedecerem as regras do jogo por ele impostas, que continuará a extremar a posição em atitude de birra, sem olhar aos interesses do país, enquanto o ego do seu líder e as vontades do partido não forem satisfeitos!
Independentemente de quem tenha mais possibilidade de vencer umas eleições gerais neste momento, esse não constitui a alternativa para ultrapassar esse imbróglio, uma vez que não podemos recorrer a esse argumento, cada vez que surgirem conflitos partidários no exercício da democracia, cuja resolução foi omitida pelo legislador! É preciso senso, tacto, tolerância e flexibilidade intelectual para se ser líder.
A solução para este imbróglio político-judicial, que mais interessa á Guiné-Bissau, tem necessariamente de passar por um diálogo franco e descomplexado dos actores políticos e judiciais, sem exclusão das partes interessadas e envolvidas no conflito, com o objectivo de encontrar uma solução política transitória, até a correcção dessas lacunas legais. Essa é a solução que beneficia todo o país e não o partido A, B ou C. É minha convicção que toda e qualquer outra solução será apenas no interesse do benefício de uma das partes da contenda e não da Guiné-Bissau. E, avançar para as novas eleições é das piores, senão a pior solução para o país neste momento. Compete ao Presidente da República mais uma vez procurar a via do diálogo e concertação com os actores políticos e só depois de esgotadas essas possibilidades, deve avançar pela dissolução do parlamento.
Tudo o que possa contribuir para o reforço da estruturação dos partidos e da relação entre eles e deles com os restantes órgãos do Estado e, ainda, a melhoria dos seus desempenhos na vida política, conduzirá ao reforço da democracia. Para esse reforço democrático, contribui e muito, a formação de consensos entre os agentes políticos e judiciais, sobre as regras de funcionamento do sistema democrático, porque a subsistência da democracia pressupõe um acordo entre os vários actores democráticos, sobre as regras do jogo democrático e o seu cumprimento.
A democracia estrutura-se com estratégias de contenção e resolução pacífica dos conflitos e não de confrontos e desafios extremados por parte dos actores políticos.
O pilar democrático mais importante para o destilar pacífico dos diferendos políticos a procura de consensos e da legitimação do poder, é a casa da democracia, a Assembleia Nacional Popular. É nessa casa da democracia que também deve destilar-se a verdadeira alternância pacífica do poder e não pode ser capturado por nenhum partido político.
A nossa Assembleia Nacional Popular, na figura do seu Presidente, teve importantes culpas no caminho que se percorreu, até a chegada a esse ponto de difícil retorno. O Presidente da Assembleia Nacional Popular e consequentemente a sua Comissão Permanente deixaram-se inquinar pelos dejectos colocados na ventoinha da sede do PAIGC e, nem sequer tiveram o respeito pelos colegas de profissão e pelos eleitores que votaram para a função que desempenham nessa casa da democracia. Colocaram os interesses partidários a frente dos interesses da Nação e tudo fizeram, inclusive o forjar de regras democráticas, dentro da própria casa da democracia, tão só para defender os interesses dos seus partidos e não da democracia e do Estado Guineense. É por isso que defendo que o actual Presidente da Assembleia Nacional Popular não tem condições para continuar no cargo que ocupa, sendo essa uma das condições primordiais para o ultrapassar da contenda que os actores políticos hoje vivem
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Apesar de os grupos parlamenteares funcionarem como um instrumento partidário dentro da Assembleia Nacional Popular, é desejável que haja uma boa dose de autonomia do Parlamento, principalmente dos seus órgãos de liderança, em relação aos partidos. É essa dose de autonomia e de cultura democrática que faltou ao Presidente da Assembleia Nacional Popular e a sua Comissão Permanete.
Outro pilar da construção da nossa democracia que tem ruído, é o que devia sustentar a legitimidade moral dos nossos antigos Combatentes da Liberdade da Pátria na contribuição para a estruturação da democracia guineense. Imbuídos na defesa do bem-estar social de cada um, cada um deles posiciona-se na defesa de uma das partes da contenda, contribuindo para o agudizar do conflito, em vez de assumirem a postura moderadora e conciliadora que a experiência e a autoridade dos seus estatutos lhes proporcionaram! Permitem serem sistematicamente usados como “carne para canhão”, na defesa de interesses que eles próprios por vezes desconhecem, desde que haja a promessa de alguma migalha ou garantia da não retirada da migalha de que já usufruem!
É chegada a hora do Estado Guineense criar mecanismos para a retirada dos antigos combatentes da arena político-partidária e dar-lhes reformas condignas e alguns cargos de conselheiros nalguns órgãos estatais sem cariz político. É urgente o esclarecimento dessas figuras importantes da nossa sociedade sobre a independência do Estado em relação ao PAIGC e, assim como eles lutaram para a independência do país, existem neste momento outros combatentes que estão a lutar para libertarem o Estado das garras do PAIGC e que também devem ser respeitados pela importância que têm na solidificação da democracia guineense.
Não é chamá-los como testas de ferro e pô-los a fazerem ou assinarem declarações políticas públicas, em defesa das partes em contenda, que contribuímos para a dignificação dessas importantes figuras da nossa História! Pelo contrário, dessa forma estão a ridicularizá-los e a baixarem as suas reputações sociais.
Para terminar este texto, que já vai longo, apelo a todos os actores políticos e judiciais, para abandonarem actos em prol dos interesses pessoais, corporativos, partidários ou de outro cunho e tentarem sobretudo resolver a contenda político para onde empurraram o país, colocando os interesses da mamã Guiné acima de qualquer outro interesse individual, partidária ou de outra ordem.
Jorge Herbert